Estilo de Vida e Bem-Estar
Ser gordo é uma escolha?
Dizer para alguém que "ser gordo é uma escolha" é desconhecer a complexa fisiopatologia da obesidade e os mecanismos que controlam saciedade e fome além da regulação do gasto energético.
De um modo muito simplista, podemos dizer que a obesidade é o acúmulo de gordura por um balanço calórico positivo: ingestão maior do que o gasto energético1. Mas o que controla a nossa saciedade, a fome e o equilíbrio energético? A fome é controlada por mecanismos neuroendócrinos redundantes que mantém o balanço energético2. A fome homeostática é disparada pela privação de alimentos e envolve sinalização metabólica, neuroendócrina e endócrina, que transmitem a necessidade de comer. Entre esses sinalizadores estão hormônios produzidos pelo tecido adiposo e pelo trato gastrintestinal1,2 tais como grelina (conhecido como hormônio da fome), leptina (conhecido com o hormônio da saciedade) e GLP-1 (hormônio que inibe o apetite). Tais hormônios atuam no hipotálamo sobre neurônios específicos que ativam os sensores de saciedade e fome.
A fome hedônica, que é o desejo de comer na ausência de falta de alimento, está ligada aos circuitos de prazer e recompensa que ultrapassam os controles hipotalâmicos de controle do balanço calórico, levando a ingestão de alimentos de elevada densidade calórica2. Nessa situação, emoções negativas e positivas mudam o comportamento alimentar. A microbiota intestinal nos protege de patógenos e tem papel importante para o sistema imune e funções metabólicas. A microbiota fermenta produzindo ácidos graxos de cadeia curta, que fornecem energia para o hospedeiro e influenciam os hormônios produzidos pelo trato gastrintestinal (grelina, leptina, GLP-1 e insulina), que, por sua vez, controlam fome e saciedade2.
O gasto energético também se adapta de modo que pessoas que fazem restrição calórica para perder peso apresentem aumento da sensação de fome e redução do gasto energético, como se tivessem uma programação para manter aquele peso elevado, buscando a recuperação do peso perdido1.
Um ambiente obesogênico é provavelmente a razão principal pelo aumento acentuado da prevalência de obesidade nas últimas décadas. Alimentos densamente calóricos, ultraprocessados, aqueles com diversas etapas de processamento, e uso de aditivos artificiais sendo ricos em açúcares e gorduras, sono inadequado, aumento do estresse e redução de atividade física contribuem para esse fenômeno3.
A obesidade é associada com múltiplos genes com pequeno efeito individual, que se expressam principalmente no sistema nervoso central3. Coletivamente, esses genes conferem grande diferença na suscetibilidade para desenvolver excesso de adiposidade e obesidade.
Assim, podemos ter fenótipos diferentes de obesidade, mas que, com frequência, estão sobrepostos. Esses fenótipos são: pacientes com saciação anormal, pacientes com saciedade anormal, fome emocional e gasto energético anormal4. Saciação se refere à sensação de plenitude após uma refeição que resulta em terminar de comer; saciedade é a sensação de plenitude que persiste antes do retorno da fome; a fome emocional consiste nas alterações de comportamento associadas à ansiedade e à depressão; o gasto energético anormal exemplifica-se pelas pessoas que têm gasto energético abaixo do predito, muitas vezes associados à uma menor elevação da termogênese induzida pela alimentação4.
Obesidade não deve ser definida somente pelo índice de massa corporal (IMC), mas pela associação entre o IMC, marcadores do excesso de adiposidade (circunferência abdominal, avaliação de composição corporal) e avaliação de possíveis morbidades associadas e limitações funcionais5. Recentemente, uma comissão recomendou que os pacientes sejam categorizados como obesidade pré-clínica (efeitos negativos para a saúde podem ocorrer) ou obesidade clínica (efeitos negativos já estão ocorrendo)5 para a tomada de decisão sobre os tratamentos possíveis. Consequentemente, as estratégias de gestão da obesidade pré-clínica devem ter como objetivo a redução do risco (ou seja, com intenção preventiva ou profilática), enquanto as intervenções para a obesidade clínica devem ter intenção corretiva (ou seja, terapêutica).
As consequências da obesidade clínica incluem Diabetes Tipo II, doença hepática metabólica, dislipidemia, doença renal crônica, doença aterosclerótica, osteoartrose, estase venosa e redução de capacidade funcional entre outras tantas2. É importante lembrar que os pacientes portadores de obesidade pré-clínica apresentam risco aumentado de desenvolver obesidade clínica e suas consequências, devendo ser encaminhados para acompanhamento5.
Em síntese, a obesidade é uma doença crônica muito complexa do ponto de vista fisiopatológico e genético, não completamente compreendida que não se trata de uma simples escolha. De acordo com o estágio da doença, morbidades associadas e escolhas individuais, várias escolhas de tratamento podem ser empregadas. Dizer que alguém é gordo porque quer só terá sentido se essa pessoa não deseja ou não consegue buscar tratamento complexo e para toda uma vida.
Referências
1. Mechanick JI, Apovian C, Brethauer S, Garvey WT, Joffe AM, Kim J, et al. Obesity pathogenesis: An Endocrine Society scientific statement. Endocr Rev. 2017;38(4):267-96.
2. Fasano A. The physiology of the hunger. N Engl J Med. 2025;392:372-81.
3. Lingvay I, Cohen RV, le Roux CW, Sumithran P. Obesity in adults. Lancet. 2024 7;404(10456):972-987.
4. Zandvakili I, Pulaski M, Pickett-Blakely O. A phenotypic approach to obesity treatment. Nutr Clin Pract. 2023;38(5):959-75.
5. Rubino F, Cummings DE, Eckel RH, Cohen RV, Wilding JPH, Brown WA, et al. Definition and diagnostic criteria of clinical obesity. Lancet Diabetes Endocrinol. 2025;13(3):221-62.